Por Boletim Batalhar
A mídia corporativa vem tratando as atuais eleições como as mais importantes e decisivas desde que os brasileiros voltaram a eleger presidentes em 1989. O próprio Tribunal Superior Eleitoral vem fazendo campanha publicitária intensa pela não abstenção. São diversas as vozes, vindas das candidaturas de esquerda e direita, no sentido de que é preciso ir às urnas para salvar o país de um futuro tenebroso, seja ele qual for. Como sabemos, independente do resultado, as classes capitalistas não estarão ameaçadas, porém, para elas o fundamental é que o proletariado continue acreditando nas instituições da manutenção da ordem. Assim, é preciso analisar o processo histórico que nos trouxe até aqui para desmanchar as ilusões e as falsas polarizações que estão sendo propagadas nesse período, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência de classe proletária que se materialize em um protagonismo político de fato.
Lula e Bolsonaro: desmobilizar e dividir
Ao nosso ver não é correto igualar as duas principais candidaturas que agora estão colocadas. Embora sirvam, em última instância, aos mesmos interesses, cumpriram e seguem cumprindo papéis distintos na consciência do proletariado.
Lula e PT foram fenômenos políticos que sempre se mostraram inimigos extremamente hábeis da autonomia proletária. Do final da década de 1970 até chegar ao poder em 2003, no campo e na cidade, levaram multidões de explorados a limitarem suas pautas pela legalidade burguesa e se organizarem em instituições da conservação (sindicatos, partidos, cooperativas), além de os engajarem em lutas que nunca irão resultar em uma emancipação política de classe (diretas já, constituinte de 1988, reforma agrária, etc.). Na presidência por quase quatro mandatos, burocratizaram e praticamente extinguiram os movimentos sociais que ainda faziam algum tipo de oposição ao modo como o capitalismo era gerido no Brasil. Mais que isso, aprofundaram os ataques ao proletariado iniciados por FHC como a Reforma Universitária em 2002 e a Reforma da Previdência em 2003. Não podemos esquecer que deu toda a base para a Escola sem Partido - mais tarde criticada numa perspectiva identitária pela esquerda do Capital - através do acordo firmado pelo governo Lula com o Vaticano em 2010.
Ao longo dessas mais de quatro décadas, aquele proletariado capaz de paralisar o parque fabril do país em plena ditadura foi se fragmentando e perdendo identidade, percebendo que independente do quanto lutasse por aquelas pautas, nenhuma mudança significativa estava surgindo em termos coletivos. Com Lula na presidência da república, os proletários passaram a se enxergar como brasileiros, consumidores, cristãos, nova classe média, negros, LGBT’s, e muitos outros rótulos ideológicos, só não se viam pertencendo a uma mesma classe. Difusos, sem pauta, endividados e frustrados com o cenário econômico que aqui se iniciava no começo dos anos 2010, apresentou-se a oportunidade de os capitalistas jogarem os proletários uns contra os outros. Surgiu então um movimento político de extrema-direita que tomou as ruas a partir de 2013 e chegou à presidência com Bolsonaro e seus militares.
No campo ideológico, essa transição se deu por meio de várias simbologias. Os proletários que encamparam a ideia de que era preciso estudar e trabalhar por um país melhor para serem recompensados, que “não desistiam nunca”, passaram a procurar culpados pelo aparente fracasso daquele projeto, apontando o dedo para seus iguais como se esses fossem privilegiados. Coube a Bolsonaro canalizar e consolidar essas frustrações no senso comum do eleitorado, nomeando os supostos inimigos da pátria, tendo por base justamente as bandeiras identitárias que o PT havia promovido durante décadas. Por essa lógica, ambientalistas, comunidades indígenas e quilombolas viraram símbolos do atraso no campo; pessoas não heterossexuais, e defensoras da legalização das drogas ou do aborto foram eleitas inimigas das famílias brasileiras; servidores públicos foram taxados de marajás diante da informalidade e precarização dos trabalhadores da iniciativa privada, e assim por diante. Enquanto os burgueses e os gestores seguiram tranquilos.
Em complemento, outra marca do governo Bolsonaro foi a promoção da ideia de exercício individual da violência como saída para problemas coletivos, típica dos ideais fascistas, numa lógica de revolta dentro da ordem. Pesquisa recente informa que 2/3 dos brasileiros têm medo de sofrer violência por motivações políticas, o que na prática é proletário com medo de proletário, sem debate e sem articulação.
"Bolsonaro obviamente é uma figura caristmática, e Luta também. Isso é o que é tão único sobre essa corrida. Você tem duas figuras de estatura global, importantes para o mundo, e que sabem como se conectar com a pessoa comum. (...) Acho que o que torna isso tudo tão fascinante é que eu acredito muito nos trabalhadores. E, parte do nosso trabalho tem sido atrair democratas e sindicalistas para a nossa causa. Então, tem coisas que Lula defende que nós acreditamos." Steve Bannon - articulador internacional de campanhas de extrema-direita
"O nosso enfoque do problema da utilização do sufrágio deve ressaltar sempre que tudo depende da ação do proletariado como classe, que deve olhar desde já para além do capitalismo. A tática concreta que dê forma ao antiparlamentarismo revolucionário (apoio tático, abstenção, boicote, insurreição ou duplo poder) depende das condições históricas obejtivas e subjetivas em que se encontre o movimento proletário. A tática revolucionária deve servir funamentalmente para reforçar e estimular a autoatividade consciente dos(as) proletários(as)." Grupo de Comunistas de Conselho da Galiza
Após o aparente caos institucional fabricado nos últimos quatro anos, o PT ressurge agora, como na década de 1980, sempre a serviço dos capitalistas, fazendo crer que a democracia burguesa é a única saída, que o que é bom para o país é bom para os trabalhadores, como tem afirmado nas últimas quatro décadas. Do outro lado, Bolsonaro propaga que é preciso salvar o país da ameaça petista a qualquer custo. Para a burguesia, a falta de esperança dos explorados com a política pode ter vários resultados, só não pode se converter em descrença nas instituições capitalistas.
Polarização?
Embora tenham cumprido papéis históricos diferentes na consciência de classe, Lula e Bolsonaro sabem muito bem a quem devem obediência, para muito além dos ideais partidários que possam vir a defender. Prova disso é o histórico de alianças e coligações dos últimos trinta anos: entre 2002 e 2010 o vice de Lula foi o empresário José Alencar, filiado ao PL, atual partido de Bolsonaro; nas seis eleições presidenciais entre 1994 e 2014 o PT enfrentou diretamente o PSDB, então partido de Geraldo Alckmin, ligado ao reacionarismo católico e que hoje é vice de Lula. E ainda querem nos convencer a salvar a democracia! Ora, a única polarização real é entre capitalistas e proletários, qualquer outra que se propague serve apenas aos exploradores.
A ideologia da polarização entre entre esquerda e direita do capital, embora reflita uma contradição, que é real, tenta passar a impressão da existência de um antagonismo, que é ideológico. Nessa onda ideológica, a esquerda do capital surfa na ideia de um comunismo, um espírito revolucionário, que a direita, antevendo a traição social-democrata desse ideal, reforça. Por mais que soe repetitivo, trata-se de uma lembrança que precisa ser resgatada de tempos em tempos para que o proletariado possa sair desse atoleiro ideológico. Uma lembrança que o BB traz desde seu número 15- num contexto internacional, inclusive - repetiu no número 34 - já em contexto nacional - e seguirá repetindo o quanto for necessário durante a sua existência. O primeiro resgate é de uma historicidade muito anterior ao BB: 1918, ano da Revolução Alemã (BB 36) e da ascensão de Friedrich Ebert, o “primeiro Lula”. Vale lembrar, também, que o que veio após o “primeiro Lula” não é mera coincidência com o que ocorreu por aqui. Para quebrar esse ciclo é preciso que o proletariado participe ativamente nas lutas e não seja mero espectador de uma festa democrática.
Perspectivas para os próximos quatro anos
Primeiramente é preciso reconhecer que, diante do fosso de apatia que o proletariado se encontra e o grau de simpatia que parcela significativa demonstrou pelos ideais da extrema-direita nos últimos anos, tivemos sorte de Bolsonaro e sua equipe de oficiais militares e lideranças evangélicas terem feito uma gestão incompetente diante das expectativas da maioria que os elegeu. Caso tivessem alcançado resultados semelhantes aos que o PT alcançou entre 2003 e 2006, nós anticapitalistas estaríamos em uma situação muito mais complicada frente às tarefas a que nos propomos. Além disso, depois de 4 anos de conchavos e trocas frenéticas de ministros, incluindo reformulações completas do Ministério da Saúde em plena pandemia, fica difícil Bolsonaro posar de candidato fora da panela.
Saber disso já é um motivo e tanto para não se engajar e nem contribuir com esse jogo democrático do qual nunca sairemos vencedores. Nos momentos de recuo da nossa classe, muitas vezes seremos obrigados a nos proteger fazendo uso de garantias democráticas, mas isso não pode significar a defesa de nenhuma forma de capitalismo, mesmo que sob um aparente “Estado de bem-estar social”. A história já provou que a ideologia do “mal-menor” é uma farsa e que o proletariado nunca estará “protegido” pela social-democracia no poder. Ela não consegue ser um guarda-chuva, mas cumpre bem um papel de estímulo para a extrema-direita, pois não atende os reais anseios do proletariado ao mesmo tempo que tenta reforçar a crença nas instituições do Estado.
É compreensível que parte expressiva do proletariado vá às urnas em outubro para tentar mudar o mais rápido possível sua condição material de fome e miséria, mas o fato de ter votado em algum candidato não deve impedir a luta que precisa ser feita nos locais de trabalho, estudo e moradia. Independente de quem ganhar as eleições, os próximos quatro anos serão de continuidade das ofensivas do capital e de articulação dos setores da extrema-direita no Estado e nas ruas, seja para minar um governo petista ou dar sustentação ao segundo mandato de Bolsonaro. A única maneira de frear tudo isso é por meio de lutas proletárias autônomas, com pautas próprias e de classe, o que pode significar uma chance histórica de o proletariado se descolar de vez tanto da social-democracia quanto da extrema-direita.